- Uma forma de registrar as histórias de vida é por meio da entrevista, uma prática de interação entre dois lados: quem conta e quem pergunta e ouve. Ao contrário de um interrogatório ou questionário, o que se busca é criar um momento de troca e diálogo entre as duas partes, sendo que o assunto da conversa é a história de vida de uma delas. Podemos dizer que a entrevista é um produto em coautoria do entrevistado e do entrevistador.
- Busca-se transformar a entrevista num momento solene, até mesmo sublime, em que a pessoa possa se religar a sua memória e contar sua história, com ajuda de um entrevistador atento e respeitoso. É como puxar o fio da memória e deixar que a narrativa flua.
- Costumamos dizer que, para uma boa entrevista, pode bastar uma primeira pergunta. A partir de então, é saber ouvir uma história que muitas vezes está simplesmente guardada, pronta para ser contada. Cabe ao entrevistador auxiliar a pessoa a organizar as lembranças que vêm à tona em uma narrativa própria.
- Tão importante quanto o conteúdo narrado são seu ritmo e seu jeito de contar.
Roteiro
O roteiro é uma sequência de perguntas elaboradas pelo entrevistador (ou pelo grupo), que o ajuda a preparar-se para a entrevista. Não deve ser entendido como um questionário rígido, mas como um guia para estimular o entrevistado. sobre como fazer um roteiro.
O desafio é construir um roteiro que ajude a pessoa a encadear seus pensamentos e organizar a narrativa à sua maneira. O tipo e a ordem das perguntas – estejam ou não previstas no roteiro – tendem a definir o tipo de história que será contada. Abaixo seguem dicas de como organizar as perguntas do roteiro:
Para começar – Comece com perguntas fáceis de responder, como nome, local e data de nascimento. Além de contextualizar a pessoa, essas perguntas têm a função de “esquentar” a entrevista. É como um começo delicado de um relacionamento, e nada como perguntas simples e objetivas para deixar o entrevistado à vontade e ajudá-lo a mergulhar em suas memórias.
Encadeamento – A ordem cronológica costuma ser um bom fio condutor da conversa, mas não é o único. Vale observar se a comunidade ou grupo tem outra lógica de organização de suas histórias. Se for adotado o critério cronológico, o roteiro pode ser organizado em três grandes blocos de perguntas:
Introdução – Origem da pessoa, pais, avós, infância.
Desenvolvimento – Fases da sua trajetória, incluindo a sua principal atividade ou, se for o caso, o tema específico do projeto.
Finalização – Conclusão da história, relação com o presente e o futuro.
Confira agora exemplos de perguntas que ajudam e as que atrapalham na hora da entrevista.
Perguntas que ajudam:
- Descritivas – Recuperam detalhes envolventes
P: Descreva a casa da sua infância.
R: Era uma casa de dois andares. Tinha um quintal grande, com uma mangueira. Também tinha um muro, de onde a gente ficava olhando a casa do vizinho. Me lembro de um casamento lá em que só a minha irmã mais velha foi convidada. Eu fiquei sentadinha no muro dizendo: “Tá gostoso o olho de sogra? Traz um para mim!”
- De movimento – Ajudam a continuar a história
P: O que você fez depois que saiu de casa?
R: Eu precisava arranjar um trabalho e consegui emprego lá no Cine Marabá. Não tinha mais a cobertura dos meus pais, então eu precisava me virar. Naquela época não era muito difícil arrumar trabalho.
- Avaliativas – Provocam momentos de reflexão e avaliação
P: Fale um pouco do que você sentiu quando chegou à cidade grande.
R: Ah, foi uma coisa assim esquisita. Porque eu queria vir e foi muito tempo dentro do ônibus de lá até aqui, foram três dias e duas noites. Quando cheguei, achei tudo uma imensidão, fiquei com medo. O ônibus rodando dentro da cidade e parecia que não acabava nunca, aquele monte de prédio, aquele monte de coisa
Perguntas que atrapalham:
- Indutivas – Levam o entrevistado a dar uma resposta que já está na pergunta.
P: A cidade em que você nasceu era bonita?
R: Era, era muito bonita.
- Genéricas – Estimulam respostas genéricas, sem histórias.
P: Como foi sua infância?
R: Foi boa, foi ótima.
- Com pressupostos – Propiciam respostas meramente opinativas.
P: O que você acha da situação atual do Brasil?
R: Acho que estamos melhorando, mas ainda temos muito que crescer.
- Puramente informativas – Podem desconcertar o entrevistado e interromper sua narrativa.
P: Antes de você continuar essa história, qual era o nome da praça em que vocês jogavam bola?
R: Rapaz, o nome da praça? Nem me lembro.
- Com julgamento de valor – Atendem apenas a hipóteses e anseios do entrevistador.
P: Você não acha que deveria ter feito algo?
R: Não, porque eu não podia. Você não entende, porque não viveu aquela época, os tempos eram muito difíceis.
Roteiro base do Museu da Pessoa:
Identificação/Família
- Qual é seu nome, local e data de nascimento?
- Qual o nome dos pais?
- O que os seus pais faziam?
- Como você descreveria seu pai e sua mãe?
- Quais eram os principais costumes da sua família?
- Você gostava de ouvir histórias? Quem te contava?
- Você sabe a origem da sua família?
- Você tem irmãos? Quantos sãos?
Infância
- Você lembra a casa onde passou sua infância? Como era?
- E o bairro e a cidade?
- Quais eram as suas brincadeiras favoritas? Você tinha muitos amigos?
- O que você queria ser quando crescesse?
- O que você mais gostava de fazer quando era criança?
Educação
- Qual a primeira lembrança que você tem da escola?
- Você teve algum professor que te marcou?
- Como você ia para a escola?
Juventude
- Qual foi o seu primeiro namoro?
- Quando e como você começou a sair sozinho ou com amigos?
- O que vocês faziam? – O que mudou em relação à sua infância?
Trabalho
- Quando começou a trabalhar e qual foi seu primeiro trabalho?
- O que você fazia com o dinheiro que ganhava?
- Que outros trabalhos você fez?
Migração/Imigração
- Você (ou sua família) se mudou? Por quê?
- Por que foi para tal cidade/estado/país?
- Como foi a viagem?
- Aonde vocês chegaram?
- Qual foi a sua primeira impressão?
- O que mais chamou sua atenção?
- Quais foram as primeiras dificuldades?
Casamento/Filhos
- Como conheceu seu marido (esposa)?
- Você lembra o dia do teu casamento? Como foi?
- Vocês tiveram filhos? Quais os nomes dos filhos?
- Como foi ser pai (mãe)?
Conclusão
- O que você faz hoje?
- Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
- Quais os seus sonhos?
- Como foi contar a sua história?
A postura do entrevistador
Cada entrevistado não é entendido como uma mera fonte de “informações” sobre o assunto, mas, sim, como uma pessoa que de alguma maneira vivenciou um pedaço daquela história.
Nesse sentido, sua narrativa de vida é, em si mesma, a principal fonte que se quer coletar. É muito importante que o grupo sinta curiosidade e respeito pelo entrevistado.
O entrevistado é o autor principal da narrativa. É ele quem deve determinar o ritmo, o estilo e o conteúdo da sua história. No entanto, o sucesso da entrevista depende muito do entrevistador. É importante refletir sobre alguns pontos acerca do papel e da postura do entrevistador:
• Autoria – A entrevista surge da interação entre entrevistado e entrevistador. Cabe ao entrevistador um papel ativo na produção da narrativa.
• Respeito – A entrevista é um momento solene, até mesmo sagrado, no qual o entrevistado está eternizando sua história e o entrevistador participa da construção de um documento histórico. É importante preparar um ambiente acolhedor para garantir que o entrevistado se sinta tranquilo e, acima de tudo, ouvir com atenção a sua história. Quando o entrevistado é idoso, há a tendência de infantilizá-lo, e é muito importante não adotar essa postura.
• Receptividade – O roteiro é apenas um estímulo. É necessário estar totalmente disponível, ser curioso. As melhores perguntas surgem da própria história que está sendo contada.
• Sabedoria – O entrevistador nunca deve julgar o entrevistado, exigir atitudes, discutir opiniões ou cobrar verdades e precisão histórica. O objetivo da entrevista é registrar a experiência pessoal que o entrevistado tem dos acontecimentos e não uma verdade absoluta.
• Humildade – O diálogo tem como foco o entrevistado. O entrevistador não deve pressupor que o entrevistado possui os mesmos valores e conceitos que ele.
• Emoção – O papel do entrevistador é estimular e auxiliar o entrevistado na construção da história que ele quer contar. O entrevistador não é um psicólogo. Não deve procurar subentendidos, não ditos. Isso não impede que ele também se emocione com a história do entrevistado.
• Ritmo próprio – Cuidado para não interromper a linha de raciocínio do entrevistado, mesmo que ele fuja do assunto da pergunta. O entrevistador só deve interferir quando for realmente necessário, seja para retomar o fio da meada, seja para ajudá-lo a continuar.
• Atitude – O corpo, os olhos, os movimentos fazem parte do diálogo e influenciam a construção da narrativa. É necessário estar atento. Cuidado para não demonstrar impaciência ou desinteresse, bocejando ou olhando o relógio.
• Foco – O entrevistador deve priorizar a narrativa, as histórias. Não deve deixar o entrevistado perder-se em comentários e opiniões genéricas.
Agradecimento
Uma cópia da entrevista, o convite para que ele participe do resultado final do projeto, um certificado, uma carta são maneiras de agradecer o entrevistado por ter colaborado na construção da história do grupo. Além do reconhecimento por sua participação, todos esses cuidados constituem estratégias para que o entrevistado se conscientize da importância de sua história e dos desdobramentos que ela pode ter ao ser integrada às histórias de sua comunidade e da sociedade como um todo.